Ela & o café pelando para matar formigas.

Ela já devia estar acostumada às oscilações. O seu quarto maculado pelas roupas sujas, misturadas à pilhas de roupas limpas, sacos de farmácia abandonados e papéis velhos, os sapatos desparelhados, todos pelo chão e uma rede no meio de tudo, sobre a cama também revirada, o único espaço que ela tinha para dormir por apenas quatro horas, antes de levantar cedinho, sem norte, e escovar os dentes para trabalhar. Na mesa de cabeceira, pílulas e copos d’água dançavam junto à maquiagem, grampos e toda a sorte de colares. Mais três dias assim, e não teria como entrar no quarto, dada a proporção da bagunça que já crescia sem sua ajuda, alimentada por um completo descaso.

N’algum ponto de sua consciência sabia que decisões precisavam ser tomadas para que saísse daquele caos que atormentava sua pele, seu redor e afetava o seu pensar. Sua mente já não conseguia organizar mais nada e ela vivia no piloto automático, de manhã trabalho, a tarde televisão ou qualquer outra coisa que distraísse, de noite quem sabe algum amigo aparecia para salvar, madrugada à dentro rabiscando ou lendo, para cair na rede por volta das 3, acordando às 7 para recomeçar.

Entrava num torpor vago, olhos cerrados, vista perdida. Ia assim, cambaleando, pensando em despertar, quem sabe, amanhã, tomar algo energético e tentar extrair dos pulmões e boca esse fel escuro da estática que se encontrava entranhado em seu peito. Descaso, indiferença e desprezo próprios. Desprezo pelo ser vivo que ainda se encontrava escondido em alguma parte obscura daquele corpo humano. Não se sabia seu tamanho nem onde estava, seria necessário enfrentar uma viagem de ficção científica pela corrente sanguínea, e em algum lugar ela ia se encontrar comigo.

Ela, eu, eu ou ela, não sei mais quando deixei de ser eu mesmo e passei a ser aquele ela perdido, apático, em meio a veias e sangue, sombra e escuridão, uma desordem emblemática, intrínseca. Como se existisse um espírito, e este, no mais profundo asco, abandonara o corpo às mazelas, preso apenas pelo umbigo, tentando por tudo libertar-se da auto-sabotagem.

Ela sabia, sabia que deveria deixar de adiar a vida, vários projetos estancados pelo dissabor, uma dor no coração comparável unicamente à picadas das pequenas formigas, quase invisíveis, do quintal, que um amigo insistia serem mosquitinhos voadores. Mas ela sabia que eram formigas, aquelas assassinas desgraçadas e sem-vergonhas tal qual o abismo em seu peito. E o quintal ainda era um refúgio, não deixou de ser delírio às sensações, apesar das cenas de amor líricas que protagonizara com ele ali, lembranças que se encerravam na acidez da verdade.
Sua tristeza era tanta, tão profunda que bateu longe até as lágrimas e nelas não mais pôde contar para aplacar a frustração e o lamento.

Ainda queria que não fosse verdade todo o horror que se acometeu nela quando descobriu sobre ele e caiu dos sonhos à obscuridade da dúvida. Ela queria que não fosse verdade, mas não havia fuga, então sua intenção agora era deixar essa zona, sabe-se lá como, se encontrar comigo, perdida nela. Exorcizar os pequenos demônios, aquelas formigas desgraçadas, vermelhas, formigas-soldado, quase invisíveis, das quais todos os dias ela tentava, em vão, se libertar. E não sabia como, não conseguia deixar de doer. Mas iria, de alguma forma, iria, e ela mataria as formigas.

De volta ao quintal sagrado, quintal catedral, decidiu que se vestiria e foi às ruas, subiu no primeiro ônibus, música aos ouvidos, promessas de luz, e foi superar tudo através dos olhos. A visão ajudaria, a visão da estrada, o sacolejo incessante, a visão do mundo, da dor e alegria alheias, isso a ajudaria a sobreviver. Os seus olhos e olhares curiosos que ela desconhecia refletiam a vida comigo. E sobrevivemos. Voltamos, preparei um café. Estamos aqui no meu eu, no meu ela, de onde jamais deveriamos ter saído ou se desencontrado. Nada melhor que vivenciar a si mesma. Com seus próprios livros, vícios, amigos e músicas. Não precisara nem parar de rabiscar. Uma delícia, café com torradas, uma toalha sobre os insetos. Uma delícia, café pelando, doce.

- S