tudo pela metade

Era cedo assim e eu descobria novelos de lã pelo meu caminho. Eles se acentuavam a medida que minha consciência clareava. E então violeta adentrou o recinto com seu jeito prático me dizendo saia daí, que eu vou ajeitar esse negócio. Mas eu não conseguia, eu tinha um segredo macabro e não podia contar a ela, simplismente não podia. Acho que ela ia embora no primeiro passo. Então eu me recolhia, macambuzo, com meus novelos de lã pontiagudos e esperava ela tentar.

Por fim ela desistia e dizia: amanhã eu volto. E eu esperava, todos os dias, enquanto bons-dias abriam-se para o sol e pássaros trinavam seus trinados supostamente belos, eu esperava violeta, sua leveza, seu vestido vaporoso, seu jeito dominador e ao mesmo tempo doce, eu esperava, era a única coisa que me fazia tremer as extremidades dum sorriso.

encontro no quarto-aquário

Acho que eu posso contar melhor agora que os meus sonhos me mostram linhas enquanto eu ressono tranquilamente dentro do meu quarto aquário. Bolhas sobem ao teto e o brilho das estrelas mais próximas entra pelas frestas da janela. Lá fora o ar morno dos trópicos sopra asas de libélula pelo ar, o tilintar suave me acorda e eu saio da água pela janela, molhando as folhas. É lua nova e ela me sorri. Percebo o aquário cada vez mais forte ao meu redor, entornando o céu apenas aos meus olhos.
Um braço forte em tons laranja me pega a mão e quando menos se espera minha casa é uma semente e minha casca tem vários tons. Entramos na toca, o rato e eu, para troca incessante de pequenas carícias e eu te amos. Mas lá era escuro e nos perdemos, eu só percebi a falta de luz quando caiu um salto e eu já não sabia mas em qual caminho seguir, o que me guiava eram seus arquejos suaves e o cheiro. Um cheiro familiar, cheiro de rato.
Tentei por vezes acender a luz, mas não encontrava o interruptor, quando de súbito abriram a porta e já era dia. Era dia e eu não tinha saias, o sapato sem salto joguei fora, era mesmo sem coração, ele tinha-me sido tão bom nos momentos difíceis. O rato sumira com a luz, mas eu nem dei conta, pois vieram folhas flutuantes como os tapetes mágicos de histórias do passado e eu, pequenina, voei agarrada a uma delas. Cheguei perto do sol, era salgado e não era tão quente assim como dizem. Junto a mim, vaga-lumes sorriam dizendo “ieeee”, era o efeito-sol, que assim, visto de perto, dá uma alegria. E lá eles armazenavam um pouco do brilho salgado para trazer à Terra. Como num sonho, voltei ao tamanho normal e caí do céu em montes fofos de pequenas flores amarelas. Fiquei ali recebendo os raios do sol, uma modorra às sete da manhã, pus uma música, voltei pra cama de flores e desadormeci.

engrenagens mágicas dum sonho rouco

Posso dizer em mil palavras ou nenhuma o quanto tantas cousas loucas me corroem os pensamentos. Como num sonho surreal, onde você pega um bonde que tem grades e o buraco de entrada não te cabe, e, de repente, você está no seu quarto em tem simplesmente quatro camas dentro dele, não se sabe como todas couberam lá, quem faria isso? E como arranjou tanto espaço para fazê-lo? E tem também uns marmanjos com ares de marinheiro, aqueles tatuados e tudo o mais, todos alojados no seu banheiro cor-de-rosa, o engraçado são suas expressões infantis, quase que abobalhadas. Você fecha a porta pra trocar de roupa e ir ao trabalho. No caminho tem um homenzinho saindo do chão como se fosse uma planta, belas folhas compridas saem das suas axilas e o sorriso é cheio de florzinhas brancas, aquelas comuns em enterros ou campos. Sua cabeça dividida ao meio mostra engrenagens de máquinas e pássaros voam de mãos dadas à vagalumes; eu estou rouca e queria por tudo dançar com aquele galã lindo do ar, mas ele é manco e, envergonhado, disse não. De súbito, uma praia fria de águas doces e você ou eu desapercebíamos malícias das mariposas e contavámos as estrelas que caíam, elas sempre caem sabe, mas as luzes da cidade escondem este fenômeno, não sei por que. Talvez para nos impedir de fazer desejos. Mais tarde, caminhando, (onde você foi?) eu entrei num deserto e encontrei um menino que, chorando, me disse adeus. Eu não entendi nada, mas chorei também. Depois percebi que era meu melhor amigo e que ele havia partido sem volta. Enquanto isso flores cresciam no lugar dos meus cabelos e eu tinha orelhas de porta. Senti batidas leves e era uma música lá de Porto Alegre, os timbres psicodélicos, cantando 1401 já não existe mais. Senta aí, por favor, e conta esse dinheiro laranja pra mim, que eu não sei contar e preciso comprar peras. Cadê você?
fodam-se

carta ao velho amigo

Eu nunca pensei que me decepcionaria logo com você e, enquanto você tinha raiva das minhas colocações, eu tinha razão.
Nem sei por que escrevo isso, melhor nem mandar, ou você vai me ligar perguntando " o que é isso?" como se eu tivesse simplismente pirado ou algo assim. Vai aparecer amanhã talvez e tentar mostrar uma mera inverdade, para, logo depois, sumir quando mais preciso. Não percamos tempo.
Eu sei exatamente do que estou falando e precisava desabafar. Ainda bem que existe um blog quase que 100% anônimo onde eu posso simplismente te dizer adeus sem fazê-lo.
Não esperava isso de você. A gente vai vivendo e descobrindo as coisas loucas da vida e, nos dedos, os amigos vão reduzindo.
Não importa, não faço caso e assim o tempo passa e novidades vem e vão. Esse texto é uma constatação da nossa não-amizade, como se o template fosse um túmulo e as palavras, flores de adeus.

em casa II

me estendo ao chão empoeirado, é belo à luz da lua.
distingo manchas pelos redores, folhas e pó.
não há música para lamber meus ouvidos...
me abraço ao nada, de um lado teto, do outro o vão.

em casa

o pano do soalho, o suspiro na manhã morna de abril.
o hálito de descrença, o véu da dúvida sobre o que seria uma tarde sem fim.

enxugo o corpo frio, deixo a pele bebendo'sol.
do nu, escorre mel no peito. as mãos incertas, os pés no chão, é quente ou gélido?

saberes reais dançantes e disformes, não posso tocá-los.
penso, penso, o baixar afaga os olhos, vejo dedos.

não é morte ou vida. é passagem. são lugares diferentes, estações desconhecidas.
vejo dedos e sombra. vejo sombra e luz.

é aurora.
eu não sei por que te escrevo. acho que estou melancólica.
ontem vi um filme interessante e depois refleti passeando pelas folhas secas do quintal.
não quero meias verdades ou meias companhias.
quero vida viva cheia, cheiro de flor de laranja.
tá tudo muito doido ou é tudo muito doido?
acho que a condição de estar não existe... tudo é.