l'amour

"Inviolável, mútuo, o amor pode ser, por vezes, inabalável; sólido como o concreto sob nossos pés, nesta cidade de pedras e maresia, como a atitude de quem enxerga, a passos rápidos, o seu lugar. Pelas trilhas tortuosas um esgar, fresta por muito iluminada e iluminante sempre guia nossas escolhas e assim caminhamos lá e cá, hora numa escuridão hora num clarão de meio-dia, podendo a esmo seguir na fé individual absoluta nessa labuta diária, parando apenas para sorver uma taça de lucidez, quando for conveniente, ou quando se faz necessário. Vez por outra um tropeço, susto, queda, mas a solidez do sentimento é linear, alva e concreta, parte inegável do nosso ser".

- S

Diálogo Mental da Menina Sem Cor

Senta. Engole. Cospe. Quem esfacela minhas tranças? Não importa. Ele tem a cor da sarjeta e seus olhos são sangue do vício.

É apenas mais uma tentativa de abraçar uma realidade crua, tão minha quanto sua – pura superfície de idéias modernistas despojadas de mim. Então por que faço?

Ah, bem sabes... sacanagens necessárias antes de aposentar as sapatilhas desbotadas e as bolachas de pacote.

Não, não me assusta a indiferença, mas sim a falta dela que acusa estagnação. Odeio isso. O movimento, ah sim, esse sim. Dos carros, dos transeuntes, da vagina, da caneta, do farfalhar das páginas.

Não tente descobrir quem sou. Sou filha do tempo, dos versos e do gozo. Até quando? Até minha primeira rima balzaquiana ou, quem sabe, até o próximo zíper.


- H
Nada me detém
Como as cordas dos teus pensamentos
Ao meu redor – dó

Nada me (amor)tece
Como a íris do adeus
Antes dos pactos silentes do apego

Nada me exalta
Como o cheiro platônico
Do ter e não ter
Entre as paredes do desejo

Nada me tem
Pois sou asas e cores
- disformes –
Como o meu querer


- H

dejavú 1401, era noite e fazia sol nos olhos dele...

querido,

por que será que foi assim? tinha que ser assim?
que saudade dos laços que eram nossas pernas e
braços ao lado de Morfeu. Eu sempre acordava
incomodada pelo sol, pela falta d'um ventilador e
pelo espaço por ti tomado.
abria os olhos e, como por em palavras o que
acontecia no meu coração no exato instante do
acordar contigo?
Eu com Tu, é nome de doce? tarde de sábado,
fotos da lua cheia, cheia de mel. horas e horas
de olhar nos olhos. a gente conversava sobre
toda e qualquer coisa dessa vida e, ainda assim,
nossa linguagem mais poderosa era a do sentir.
olhar pelas vistas, ver nossas almas, olhar e saber.
eu sabia então, saber que hoje me escapa. quanta
saudade do seu dançar a noite, na cama, ou numa
roda de samba. Eu não sei viver sem amar
Te.

- S

O primeiro cigarro do dia

Ela abriu os olhos, uma fresta de luz entrava no quarto, ele está morto, pensou. Pensava nele todas as manhãs ao acordar, mas afastava as más lembranças rápido, antes que pudesse doer. Dormia de rede, aconchegada em meio a lençóis brancos, criara o hábito de dormir se balançando, também espalhara vários livros e roupas em cima da cama, ia se mudar em breve, finalmente, depois de alguns meses de retorno à casa da mãe. A mãe bateu suavemente na porta, lembrando-lhe do horário. Com seu carro na oficina, ela aproveitaria a carona para o trabalho.

Havia caixas e mais caixas pelo chão, cheiro de guardado, tudo muito desorganizado, ela estava ficando louca. Louca, era o nome correto, ela tinha mil post-it pregados ao redor do espelho e também no cérebro. Mil coisas para lembrar e sua agenda estava no meio do amontoado de cacarecos do quarto, nada anotado, precisava ir ao banco cancelar uma conta, precisava pagar contas, tal como o quarto e toda a reviravolta com a mudança, grandes mudanças inesperadas que ela não sabia se seriam ou não positivas, sua mente estava um bagaço, daqueles laranjas, mascado.

Levantou, se asseou, vestiu uma camiseta branca de botões madre-pérola, limpa e cheirosa, imaculada. Calçou sapatos elegantes e tomou café. Tinha um pãozinho com manteiga em cima da mesa, e, por muita insistência da mãe, só um pãozinho dizia ela, comeu. Coitadas das mães sempre se preocupam além e além. Às vezes suas vozes nos vem subindo pelos poros. E foi isso que aconteceu a ela, já em meio a tanta turbulência, a mãe conseguiu enumerar todas as suas preocupações e obrigações (as que ela conhecia) durante o percurso pelas ruas tortuosas. Como se já não bastasse sua consciência lembrando-lhe a todo instante, de todas as pendências e urgências que ela escondia como pedras em sapatos, a mãe, durante o percurso de 15 minutos, questionara todas elas.

Pobre mãe preocupada, mas ela nem pensou nisso, poxa vida mãe, disse, evitando um palavrão, já não basta que eu esteja pensando nisso o tempo todo, a senhora não falou sobre outra coisa durante o caminho!, terminou exasperada. A mãe se desculpa, se preocupa, preocupa a filha. Get off my back, ela pensou, rude, para logo em seguida se arrepender, o que seria dela sem a mãe?

Desceu do carro, clima chuvoso, ele está morto, pensou mais uma vez. Alguém fumava na porta do trabalho. Que se dane, acendeu um também, um carlton vermelho, ela não entendia por que aquela porcaria cheia de toxinas lhe fazia sentir tão bem, talvez o conjunto de acontecimentos, o céu chuvoso, ou a raiva entranhada, uma raiva não sei do quê, que ela descontava vigorosamente nas baforadas do cigarro. E o primeiro cigarro do dia lhe dá uma sensação de leseira, está quase dopada, meio zonza, bom dia, ela diz na recepção e sobe escadas para começar as próximas 24 horas.

- S